A Série Avenida Paulista traz uma bela surpresa. Uma nova série dentro da série que começa hoje e se estende nas 2 próximas semanas. Serão apresentadas histórias e fotografias inéditas que compõem a memória da própria avenida, por meio das lembranças de duas das primeiras famílias que lá residiram: os Borges de Figueiredo e os Loureiro.
Essa retrospectiva só foi possível pela gentileza e enorme colaboração de uma descendente das duas famílias: Flora Figueiredo. Agradecemos imensamente a disponibilidade de tornar pública, parte da sua história pessoal e de sua família que, sem dúvida, retrata uma parte fundamental da memória e da identidade paulistana.
O texto que apresentamos foi totalmente escrito por ela. Flora, neta de José Borges de Figueiredo e de Jayme Loureiro, é uma poetisa com sensibilidade e emoção de alma.
Uma síntese da composição de sua família: pelo lado paterno, o avô José Borges de Figueiredo casou-se com Maria Augusta Figueiredo, que dá nome à Rua Maria Figueiredo, travessa da Avenida Paulista. O casal teve os filhos José Figueiredo Júnior (Sinhô), Esther, Aurora, Mario, Plinio (que faleceu ainda criança) e Celso.
No lado materno, seu avô era Jayme Loureiro, que se casou com Ângela de Barros Loureiro e, da união, nasceram Jayme Ferreira Loureiro Filho, Maria Flora, Jairo, Lucia e José Eduardo.
As histórias das casas destas famílias já foram contadas na Série Avenida Paulista, para relembrar clique aqui para a de José Borges de Figueiredo e clique aqui para a de Jayme Ferreira Loureiro.
As famílias se uniram com o casamento de Maria Flora Loureiro com Celso Figueiredo, que se casaram em 1930. Desta união, nasceu Flora, que hoje nos presenteia com essa bela narrativa.
Hoje iniciaremos com as recordações de Flora sobre a casa de Jayme Loureiro, que ficava na esquina da Paulista com a Alameda Campinas, no número 89A. O belo projeto e construção é mais uma obra do escritório técnico Ramos de Azevedo, Severo, Villares Cia.
Para você, Flora, o nosso muitíssimo obrigada.
“Era um tempo de portas e portões abertos, como braços sempre prontos a receber afetos.
Não havia medos porque não havia riscos.
Entrar na casa da Vó Giloca (Ângela Loureiro) era certeza de café fresco e biscoitos de sequilho da última fornada.
Meus sentidos de criança arquivaram os aromas e as imagens dessa casa da avó que, acomodada em seu canto de sofá, tricotava enxovais para bebês. Os netos e os muitos afilhados eram os beneficiados por essas pequenas maravilhas.
As caixas de tricô e seus laçarotes finais me deslumbravam.
Eu sempre tentei decifrar o mistério de quem tricota sem olhar o trabalho. Como é possível?
Enquanto vovó conversava, de suas mãos minúsculas saíam preciosidades em lã, sempre em tons delicados, que mais pareciam doces.
Antes de entregá-las às mamães grávidas, Giloca tinha o cuidado de engordar os casaquinhos e sapatinhos com papel de seda, o que os tornava ainda mais atraentes.
No jardim desse reino encantado eu circulava com meu velocípede, tranças insubordinadas ao sabor do vento.
Parada obrigatória era na estufa onde avencas, samambaias, orquídeas e outras espécies se enfileiravam e eram cuidadas pelas mãos hábeis de Seu Joaquim.
Portugueses, ele e a esposa, Piedade, dedicados e responsáveis, moraram muitos anos com minha avó.
De vez em quando, percebia-se algum desajuste entre o casal. Invariavelmente, eram os ciúmes da Piedade, ciente das tendências sedutoras do marido.
Uma atração especial reunia muita gente todos os anos nessa casa da Avenida Paulista. Era a profusão de jabuticabeiras do fundo do quintal. Elas frutificavam em abundância.
Lembro-me que meu pai saia do consultório no final do dia de trabalho e seguia direto para a casa da sogra para se deliciar com as frutas que pareciam nunca acabar.
Era comum nessa época ter-se um galinheiro. Minha alegria era pegar os ovos, ainda que temerosa do galo arrepiado.
Ah, esse ovo de galinha criada no milho e que tinha gosto de ovo!…
Na garagem, um Oldsmobile preto, rigorosamente lustrado e Mário, motorista uniformizado, que se divertia em brincar com as crianças que frequentavam a casa.
Depois de muitos anos de trabalho na família, Mário se casou e foi substituído por uma figura exótica e intrigante: Anatole.
Estampa esguia, de cabelos brancos, educação primorosa, postura elegante, ele era simpático e misterioso. Apesar das poucas palavras, descobrimos que Anatole era um príncipe russo que migrara para o Brasil. Embora disfarçasse bem, percebiam-se nele resquícios da guerra.
Hoje, com o velocípede guardado na sombra dos anos, recordo esse jardim mágico que guarda memórias de um tempo de sol. Por ele, desfilaram pessoas queridas que partiram na rotação do calendário. Personagens de minha história, elas embarcam comigo no velocípede para resgatar a ternura dos caminhos percorridos.
Poetisa, reconhecida pelo seu trabalho, Flora tem vários livros publicados. Se quiserem conhecer um pouco mais sobre sua obra, acesse o site aqui.
No próximo domingo, mais uma bela narrativa das memórias de Flora Figueiredo. Não perca!